sábado, 19 de outubro de 2019

RADIOGRAFIA: a única forma de ouvires aquela música que te apaixona

          



       São capazes de imaginar os vossos dias sem os gigas de música que têm nos vossos computadores ou smartphones?  Conseguem conceber que alguém vos proíba de ouvir as vossas músicas favoritas? 

Trago-vos um facto histórico, retirado de um projeto de investigação histórica dos músico Stephen Coates, artista sonoro Alex Kolkowski e fotógrafo Paul Hartfield “X-Ray Audio Project”, que retrata uma página negra da história da antiga União Soviética. 

A revolução de 1917, nos seus primeiros anos, trouxe momentos vertiginosos para a cultura. Fizeram-se experiências incríveis e inovadoras em todas as disciplinas culturais e a música não era excepção. Mas aos poucos, e com a chegada de Estaline ao poder, em 1932, as coisas modificaram-se, e todas as expressões de arte: a poesia, o teatro, o ballet, a música foram sujeitas à censura. O censor decidia se o livro, a peça de teatro, a música coincidiam, ou não,  com os valores da realidade soviética. 

Depois da Segunda Guerra, a Guerra Fria instala-se e o Jazz, o Tango e o Rock´n´ Roll tornam-se categorias de música do inimigo e foram completamente proibidas. 

Já não se podia ouvir Ella Fitzgerald ou Bill Haley. Os músicos soviéticos que vivessem, ou não, na União Soviética e  tocassem Jazz, foram proibidos de ser escutados, alguns deles muito populares. Ella Belanova foi uma delas. Toda a sua obra foi proibida, até os discos que falavam de amor. Outro foi Kazan, usou-se a  homossexualidade para proibir a sua música. Alguma música popular foi igualmente proibida por falar de prostitutas e criminosos. O saxofone deixou de ser bem visto. 

O facto é que existia toda uma cultura que foi afastada da população, que sentiu muito a sua falta. 

Estão a imaginar não poderem ouvir os Xutos e Pontapés? O Camané? A Cristina Branco? O Salvador Sobral? O Estado a controlar completamente aquilo que podiam ou não ouvir? 

A nossa história começa em 1946, quando chega a Leninegrado, um polaco chamado Stalisnaw Philo. Trazia com ele uma extraordinária máquina de gravação, um troféu de guerra subtraído aos Alemães



retirado de https://www.youtube.com/watch?v=49aWAH200

Torno de gravação é, dizem os especialistas, uma espécie de gramofone de sentido inverso, e em vez de uma agulha tem uma lamina. A lamina, ao sinal de um som, fazia sulcos num material plástico que se pode reproduzir. Instrumento provavelmente utilizado para mandar informações para a frente de guerra. 

Stalisnaw Philo monta o aparelho numa loja, e  por alguns rublos permitia que se falasse para um microfone e se gravasse a voz do próprio num material de plástico, como uma recordação. O negócio expandiu-se, todavia não por causa dos “recuerdos”, mas porque todas as tardes, quando a loja fechava, usava a máquina para fazer cópias dos discos de gramofone proibidos. Fazia discos pirata e vendia-os aos amantes de música. 

Dois dos seus clientes, Ruslan Bogoslowski, amante de tango, e Boris Taigin tornaram-se grandes amigos e cúmplices através desse amor à música. Um belo dia diz Bogoslowski a Taigin: "e se  fizéssemos os nossos próprios discos não seria genial?" Taigin retorquiu: "seria genial, mas onde vamos nós arranjar um instrumento de gravação aqui na URSS? Mesmo que encontrássemos seria tão caro que não conseguiríamos." 

Bogoslowski tira papel e caneta e diz: "há semanas que ando a investigar, a fazer desenhos e medições secretamente desta máquina de gravação, e acredito que conseguimos construir uma". O pai de Bogoslowski era engenheiro e tinha uma oficina, e foi lá que reciclaram material e mais material , restos de gramofones, tornos e conseguem fabricar uma máquina de gravação. Estava pronta para realizar a primeira gravação. Surge uma dificuldade, estavam na URSS, em que material iam gravar

É mesmo aqui que se encontra o ponto alto da nossa história. Pode-se gravar música em vários tipos de plástico. Sabemos, também, que em tempos de opressão os humanos são muito engenhosos e criativos. 

A alguém muito esperto e habilidoso lhe ocorreu uma ideia de reciclar e reutilizar radiografias usadas como a base para fazer discos piratas, ideia imediatamente aproveitada por Bogoslowski e Taigin fazerem discos piratas. 

Ideia excelente porque o governo da URSS tinha decretado que os hospitais deviam desfazer-se das radiografias porque eram materiais com grande risco de incêndio. E é desta forma que as traseiras dos hospitais se tronaram depósitos de radiografias que se compravam com poucos rublos e umas garrafas de vodka. O pessoal do hospital livrava-se de um problema e eles conseguiam muitos recursos para os seus discos piratas.

Este novo material, as radiografias, tinham um excelente som, melhor do que o de Stalisnaw Philo que começou a perder clientes. Porém, acabaram por se unir e fazerem a primeira discográfica clandestina de DISCOS RADIOGRAFIAS pirata da URSS.

Várias máquinas se reproduziram por toda a URSS e o segredo de como se gravava em radiografias foi divulgado por todo o País. Leninegrado, Moscovo, Kiev

A escritora Anya von Bremzem explicou que para finalizar o disco se cortava o raio-x num círculo com tesourinhas de manicura e depois abria um buraco no meio com a brasa de um cigarro. “Você tinha Elvis nos pulmões e Duke Ellington no cérebro da tia Masha. Música ocidental proibida no interior de cidadãos soviéticos.” Nascia a Bone Music

Claro que as autoridades ficaram atentas e acabaram com todos estes negócios em Leninegrado e prenderam os dois amigos. Bogoslowski foi condenado a 5 anos no Gulag por fazer cópias de música. Taigin a 7 anos porque gravava as suas próprias composições.

Por sorte Estaline morre nos dois anos seguintes e uma amnistia retirou-os da prisão. Assim que se viram livres o que foram fazer? Discos com radiografias. 

Imagens de dor inscritas em sons que deram a tantos o maior dos prazeres: ouvir música. Imagens do interior do povo soviético impregnadas e gravadas com a música que amavam em segredo. As radiografias com música vendiam nas esquinas, em sítios secretos e obscuros, como hoje se vendem drogas. Eram caros e não duravam muito, estavam mal identificados, mas podiam substituir-se e nada importava

Eram objetos preciosos porque permitiam a liberdade de se ouvir o que se queria, quando se queria. 


retirado de http://conter.gov.br/site/noticia/curiosidades

Eu ouço música todos os dias, e agora, quando rodo a minha playlist no meu smartphone penso nesta história, nesta época, onde a única forma de escutar e partilhar as músicas do meu coração era através de uma RADIOGRAFIA.


ouça aqui















 Bone music


imagens retiradas dos sites abaixo, 
As fotos dos discos são do húngaro Jozsef Hajdu

Bibliografia:

COOPER, F.; PACKARD, R. 1997. “Introduction”. In: ________; ________ (orgs.). International development and the social sciences: essays on the his- tory and politics of knowledge. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, pp. 1-41. 
HIRSCH, F. 2002. “Toward an empire of nations: bordermaking and the formation of soviet national identities”. Russian Review, vol. LIX, no 2, abril, pp. 201-226.
SLEZKINE, Y. 2002. “Imperialism as the highest stage of socialism”. Rus- sian Review, vol. LIX, no 2, abril, pp. 227-234. 
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150130_raiox_discos_russia_cc
https://www.lavanguardia.com/cultura/20170522/422734439481/discos-radiografias-censura-musica-union-sovietica-stalin.html
https://www.theguardian.com/music/2015/jan/29/bone-music-soviet-bootleg-records-pressed-on-xrays
https://www.x-rayaudio.com
https://www.youtube.com/watch?v=49aWAH200
https://www.fastcompany.com/3032206/how-soviet-hipsters-saved-rock-n-roll-with-x-ray-records#2

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