Trago-vos um facto histórico, retirado de um projeto de investigação histórica dos músico Stephen Coates, artista sonoro Alex Kolkowski e fotógrafo Paul Hartfield “X-Ray Audio Project”, que retrata uma página negra da história da antiga União Soviética.
A revolução de 1917, nos seus primeiros anos, trouxe momentos vertiginosos para a cultura. Fizeram-se experiências incríveis e inovadoras em todas as disciplinas culturais e a música não era excepção. Mas aos poucos, e com a chegada de Estaline ao poder, em 1932, as coisas modificaram-se, e todas as expressões de arte: a poesia, o teatro, o ballet, a música foram sujeitas à censura. O censor decidia se o livro, a peça de teatro, a música coincidiam, ou não, com os valores da realidade soviética.
Depois da Segunda Guerra, a Guerra Fria instala-se e o Jazz, o Tango e o Rock´n´ Roll tornam-se categorias de música do inimigo e foram completamente proibidas.
Já não se podia ouvir Ella Fitzgerald ou Bill Haley. Os músicos soviéticos que vivessem, ou não, na União Soviética e tocassem Jazz, foram proibidos de ser escutados, alguns deles muito populares. Ella Belanova foi uma delas. Toda a sua obra foi proibida, até os discos que falavam de amor. Outro foi Kazan, usou-se a homossexualidade para proibir a sua música. Alguma música popular foi igualmente proibida por falar de prostitutas e criminosos. O saxofone deixou de ser bem visto.
O facto é que existia toda uma cultura que foi afastada da população, que sentiu muito a sua falta.
Estão a imaginar não poderem ouvir os Xutos e Pontapés? O Camané? A Cristina Branco? O Salvador Sobral? O Estado a controlar completamente aquilo que podiam ou não ouvir?
A nossa história começa em 1946, quando chega a Leninegrado, um polaco chamado Stalisnaw Philo. Trazia com ele uma extraordinária máquina de gravação, um troféu de guerra subtraído aos Alemães
retirado de https://www.youtube.com/watch?v=49aWAH200 |
Torno de gravação é, dizem os especialistas, uma espécie de gramofone de sentido inverso, e em vez de uma agulha tem uma lamina. A lamina, ao sinal de um som, fazia sulcos num material plástico que se pode reproduzir. Instrumento provavelmente utilizado para mandar informações para a frente de guerra.
Stalisnaw Philo monta o aparelho numa loja, e por alguns rublos permitia que se falasse para um microfone e se gravasse a voz do próprio num material de plástico, como uma recordação. O negócio expandiu-se, todavia não por causa dos “recuerdos”, mas porque todas as tardes, quando a loja fechava, usava a máquina para fazer cópias dos discos de gramofone proibidos. Fazia discos pirata e vendia-os aos amantes de música.
Dois dos seus clientes, Ruslan Bogoslowski, amante de tango, e Boris Taigin tornaram-se grandes amigos e cúmplices através desse amor à música. Um belo dia diz Bogoslowski a Taigin: "e se fizéssemos os nossos próprios discos não seria genial?" Taigin retorquiu: "seria genial, mas onde vamos nós arranjar um instrumento de gravação aqui na URSS? Mesmo que encontrássemos seria tão caro que não conseguiríamos."
Bogoslowski tira papel e caneta e diz: "há semanas que ando a investigar, a fazer desenhos e medições secretamente desta máquina de gravação, e acredito que conseguimos construir uma". O pai de Bogoslowski era engenheiro e tinha uma oficina, e foi lá que reciclaram material e mais material , restos de gramofones, tornos e conseguem fabricar uma máquina de gravação. Estava pronta para realizar a primeira gravação. Surge uma dificuldade, estavam na URSS, em que material iam gravar
É mesmo aqui que se encontra o ponto alto da nossa história. Pode-se gravar música em vários tipos de plástico. Sabemos, também, que em tempos de opressão os humanos são muito engenhosos e criativos.
A alguém muito esperto e habilidoso lhe ocorreu uma ideia de reciclar e reutilizar radiografias usadas como a base para fazer discos piratas, ideia imediatamente aproveitada por Bogoslowski e Taigin fazerem discos piratas.
Ideia excelente porque o governo da URSS tinha decretado que os hospitais deviam desfazer-se das radiografias porque eram materiais com grande risco de incêndio. E é desta forma que as traseiras dos hospitais se tronaram depósitos de radiografias que se compravam com poucos rublos e umas garrafas de vodka. O pessoal do hospital livrava-se de um problema e eles conseguiam muitos recursos para os seus discos piratas.
Este novo material, as radiografias, tinham um excelente som, melhor do que o de Stalisnaw Philo que começou a perder clientes. Porém, acabaram por se unir e fazerem a primeira discográfica clandestina de DISCOS RADIOGRAFIAS pirata da URSS.
Várias máquinas se reproduziram por toda a URSS e o segredo de como se gravava em radiografias foi divulgado por todo o País. Leninegrado, Moscovo, Kiev
A escritora Anya von Bremzem explicou que para finalizar o disco se cortava o raio-x num círculo com tesourinhas de manicura e depois abria um buraco no meio com a brasa de um cigarro. “Você tinha Elvis nos pulmões e Duke Ellington no cérebro da tia Masha. Música ocidental proibida no interior de cidadãos soviéticos.” Nascia a Bone Music
Claro que as autoridades ficaram atentas e acabaram com todos estes negócios em Leninegrado e prenderam os dois amigos. Bogoslowski foi condenado a 5 anos no Gulag por fazer cópias de música. Taigin a 7 anos porque gravava as suas próprias composições.
Por sorte Estaline morre nos dois anos seguintes e uma amnistia retirou-os da prisão. Assim que se viram livres o que foram fazer? Discos com radiografias.
Imagens de dor inscritas em sons que deram a tantos o maior dos prazeres: ouvir música. Imagens do interior do povo soviético impregnadas e gravadas com a música que amavam em segredo. As radiografias com música vendiam nas esquinas, em sítios secretos e obscuros, como hoje se vendem drogas. Eram caros e não duravam muito, estavam mal identificados, mas podiam substituir-se e nada importava
Eram objetos preciosos porque permitiam a liberdade de se ouvir o que se queria, quando se queria.
retirado de http://conter.gov.br/site/noticia/curiosidades |
Eu ouço música todos os dias, e agora, quando rodo a minha playlist no meu smartphone penso nesta história, nesta época, onde a única forma de escutar e partilhar as músicas do meu coração era através de uma RADIOGRAFIA.
ouça aqui |
Bone music |
imagens retiradas dos sites abaixo,
As fotos dos discos são do húngaro Jozsef Hajdu
Bibliografia:
COOPER, F.; PACKARD, R. 1997. “Introduction”. In: ________; ________ (orgs.). International development and the social sciences: essays on the his- tory and politics of knowledge. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, pp. 1-41.
HIRSCH, F. 2002. “Toward an empire of nations: bordermaking and the formation of soviet national identities”. Russian Review, vol. LIX, no 2, abril, pp. 201-226.
SLEZKINE, Y. 2002. “Imperialism as the highest stage of socialism”. Rus- sian Review, vol. LIX, no 2, abril, pp. 227-234.
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150130_raiox_discos_russia_cc
https://www.lavanguardia.com/cultura/20170522/422734439481/discos-radiografias-censura-musica-union-sovietica-stalin.html
https://www.theguardian.com/music/2015/jan/29/bone-music-soviet-bootleg-records-pressed-on-xrays
https://www.x-rayaudio.com
https://www.lavanguardia.com/cultura/20170522/422734439481/discos-radiografias-censura-musica-union-sovietica-stalin.html
https://www.theguardian.com/music/2015/jan/29/bone-music-soviet-bootleg-records-pressed-on-xrays
https://www.x-rayaudio.com
https://www.youtube.com/watch?v=49aWAH200
https://www.fastcompany.com/3032206/how-soviet-hipsters-saved-rock-n-roll-with-x-ray-records#2
https://www.fastcompany.com/3032206/how-soviet-hipsters-saved-rock-n-roll-with-x-ray-records#2
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