terça-feira, 7 de novembro de 2017

1895-2017. Um olhar 122 anos depois da descoberta dos Raios X

Debaixo da pele
Tornando visível o invisível



Foi em 1895 que nos jornais de todo o mundo se publica uma imagem que mostrava os ossos da mão de uma pessoa VIVA e com um anel. A imagem, esbatida aos olhos deste nosso século XXI, pertencia à mulher de um professor universitário, reitor de uma universidade alemã e iminente físico cujo nome, W.C. Röentgen, nos une ainda hoje, passados 122 anos.

Permitam-me uma leitura diferente daquela a que, provavelmente, estarão habituados. Permitam-me que desvie o olhar da história que todos já conhecemos e tente presenteá-los com uma leitura, não direi nova (que de todo não o é), contudo menos habitual. Permitam-me a ousadia de uma leitura antropológica e histórica do corpo depois de Röentgen.


A partir da descoberta dos Raios X o corpo passou a ser entendido de forma diferente. Doravante, podíamos ver a linha exata de uma fratura óssea ou até de uma agulha espetada num osso num corpo em vida. DEUSES…..EM VIDA!


Sim! Esta foi a revolução de que vos quero falar. O pressuposto que suportava, até então, a história do comportamento humano, iria ser posto em causa pela descoberta destes raios "malditos". Esta gigantesca alteração de paradigma, que tornava visível o invisível - o interior do corpo humano -, abalava uma sociedade vitoriana cujos parâmetros de decência estariam a ser postos em causa.


A visualização do esqueleto de uma pessoa viva sempre tinha sido bloqueada pela pele. Esta barreira fora quebrada.

Estes raios rompiam o acordo social vigente e tornavam público o que antes era do foro privado. No início de 1896, um jornalista do PALL MALL London GAZETE comentou sobre a indecência revoltante de olhar os ossos das outras pessoas sugerindo até que a melhor coisa seria que todas as nações civilizadas queimassem todos os escritos sobre os raios Röentgen, executassem todos os descobridores e todo o tungsténio que existisse em qualquer canto do mundo fosse soterrado no meio do oceano. Que os peixes vejam os ossos uns dos outros se gostam, porém, nós não!


O medo do desconhecido está estampado neste texto, mas também, o pudor social e cultural. Os valores morais da época legitimavam estes comentários mais inflamados.


Os 30 anos que se seguiram implicaram alterações transversais a toda a sociedade. A arte, por exemplo, reflete sobre novos grafismos e desenvolve teorias sobre o significado da visão. A medicina envolve-se numa revolução sem precedentes. Os discursos e as retóricas sustentaram desde sempre os diferentes poderes e, de forma mais ou menos eloquente, legitimaram tantas vezes esse mesmo poder. Agora o Raio X , a visão raio X, oferecia uma metáfora ideal a introduzir nos discursos da época, surgindo interessantes promessas na boca dos novos políticos. É a altura de ideias modernistas e de se prometer um futuro com "uma visão nova" do mundo. Sabemos, hoje, que esse mundo moderno e maravilhoso, o projetado pelos discursos políticos, nunca se atingiu.


Também a literatura de ficção imediatamente previu o impacto destes raios e rapidamente postula cenários de como este poder de ver através dos objetos opacos pode afetar os indivíduos e a sociedade. H.G.WELL (iii) escreveu, logo em 1897, a obra "O Homem Invisível" (os arquivos da RTP terão algumas séries sobre este homem transparente), tão fascinado estava por estes raios. Sendo um aprendiz de farmacêutico, WELL era um homem culto, com conhecimentos de ciência, particularmente de física, e utiliza estes raios como mote para retratar o seu herói, um cientista amoral. WELL o que questiona é o seguinte: se os raios invisíveis conseguem impressionar uma película e eliminar a pele, então o seu herói inventaria uns raios que o tornassem a ele mesmo invisível. A questão de WELL era, basicamente, uma questão de menor vulnerabilidade a estes raios que nos trespassam e que tudo mostram. Deixo-vos um pequeno extrato de uma passagem do livro de WELL que dedica um capítulo da sua obra, quase todo, a disfarçadamente dar uma aula de física e resume de forma genial aquilo que o homem vitoriano poderia esperar a partir de agora:

Pensem só em todas as coisas que são transparente mas não parecem. O papel, por exemplo, é feito de fibras transparentes, e é branco e opaco pela mesma razão que o pó de vidro também é branco e opaco. Coloquem óleo em papel branco, isso preenche os interstícios entre as partículas com óleo, e assim não há mais refração ou reflexão exceto nas superfícies, e ele torna-se transparente como o vidro. E não só o papel, mas as fibras de algodão, de linho, fibras lenhosas (?), e osso, carne, cabelo…unhas e nervos…de facto todo o tecido que constitui o homem, menos o vermelho do seu sangue e o pigmento negro do cabelo, todos são feitos do mesmo tecido transparente, incolor.


Ontem como hoje, quando se transformou a linguagem dos computadores em imagens, a questão de WELL continua pertinente. Hoje, quando fatiamos corpos todos os dias, a questão incide, ainda, na interpretação ou reinterpretação, se quiserem, do que é ser HUMANO e de como estas imagens, aparentemente inócuas, fazem de todos nós seres vulneráveis.

A terminar, e numa leitura cultural e social, deixo-vos a seguinte questão: 

temos nós a consciência do poder das "nossas" imagens? 
Temos nós consciência do "nosso" poder?




(texto publicado a primeira vez em 2012)



bibliografia disponível

Sem comentários:

Enviar um comentário