quarta-feira, 24 de março de 2021

Röntgen e a Tuberculose

 


“3. Os Raios X, 1895. “Encha o peito de ar. Pode respirar!” Uma ilustração visual do bacillus 

A necessidade de confirmação do diagnóstico de Tuberculose por “meios mecânicos”, no princípio de século XX, dava maior objetividade à doença, suportada até antão na subjetividade de uma insípida clínica. Leia-se: 


                  A primeira coisa que vai fazer, Castorp, é meter-se dentro dos lençóis, para vermos se umas  semanas de cama chegam para lhe retirar a ressaca. Tudo o resto vem depois. Tiraremos uma linda fotografia às suas entranhas - decerto que irá apreciar esta perspetiva do seu interior.    

 Thomas Mann, Cap IV, O Termómetro, in A Montanha Mágica, 1924:210

 

Anteriormente à descoberta dos Raios X “(...) a medicina dependia primeiramente dos sentidos (visão tato e audição) a fim de se imaginar o interior do corpo. Ainda nos nossos dias, a “perceção direta das sensações e o seu significado é ainda importante para os clínicos, mesmo que eles dependam cada vez mais dos meios mecânicos de visão” (Reiser,1996 in Dijck, 2005:3- 4). Porém, este raios trazem consigo associados a ideia de ver a morte, mesmo a mulher de Röentgen, quando olhou para a radiografia da sua mão terá ficado assustada “(...) com a imagem fantasmagórica dos ossos de sua mão, com uma desagradável sensação de morte e pediu para nunca mais participar dessas experiências” (Carvalho, 2006:212). O que está em cima da mesa é a visualização da morte associada ao esqueleto. 

O século XIX está cheio de metáforas associadas à Tuberculose: quando sofrer de TB trazia uma áurea de refinamento; quando a TB era própria de uma sensibilidade romântica, difundida entre intelectuais e artistas (Porto, 2007); quando a doença surge, para os poetas, como algo que os torna interessantes; quando jovem que aspirasse a carreira de literato deveria “ostentar um pouco de magreza, cor pálida e tosse, como complemento aos dotes intelectuais que sente borbulhar dentro de si” (Montenegro 1997; Porto 2007); ou ainda no dizer do poeta romântico brasileiro Casimiro Abreu: 

                  “Eu desejo uma doença grave, perigosa, longa mesma (sic), pois já me cansa essa monotonia de  saúde. Mas queria a tísica com todas as suas peripécias, queria ir definhando liricamente,   soltando sempre os últimos cantos da vida e depois expirar no meio de perfumes debaixo do céu  azulado da Itália [...]” 

Montenegro, 1997 in Porto, 2007. 


O que Röentgen nos oferece, são uns Raios usados: 


            “como uma técnica de imagem, que se presta a todo o tipo de significados e      interpretações públicas gerando respostas públicas fantasiosas, que poderemos dizer tratar-se na altura de uma “X-Ray–mania” 

(Cartwright,  1995:107).

 

Lembremos que os primeiros a obterem estas imagens, depois dos cientistas/físicos na época eram os fotógrafos, por serem os únicos que tinham instrumentos para revelação e tratamento destas imagens, dando azo a algum mercantilismo associado à novidade e deixando à imaginação dos comerciantes todo o tipo de produtos com a chancela X-Ray. 

                  “Imagens de RaiosX que funcionaram, e continuam a funcionar, como ícones, fetiches e   artefactos de saúde, sexualidade, vida e morte, de forma muito significativa. O Raio X é uma  descoberta abrangente e de alguma perversão cultural, que confunde as distinções entre público e o conhecimento, entre especialidade privada e a fantasia popular, entre o discurso  científico, arte e cultura popular. Considerada uma técnica que tanto destrói como salva vidas. Como modo de conhecimento científico, tem revelado mais sobre o corpo moderno do que qualquer outra modalidade de imagem” 

(Cartwright, 1995:107-108). 

Esta transparência, agora mediada pela medicina, quase se torna uma construção social, por um lado o corpo torna-se transparente, por outro o seu interior tecnológico torna-se mais complexo porque exige saberes novos (Dijck,2005). Quanto mais vemos, mais complexa vai sendo a informação colhida, no entanto é sedutor aquele corpo que pode ser um veículo artístico. Este corpo, podemos dizer, novo, torna-se um objeto também cultural (Dijck, 2005). E a Medicina, por um lado, precisa desta objetividade mecânica e o doente, por outro, necessita desta confirmação objetivada pelos meios de visão mecânicos. Vejamos, Castorp, que para aceitar na totalidade a sua Tuberculose nos diz: 


                  Isso é verdade, não se pode ter a certeza de nada – concordou Hans Castorp. Mas por essa razão é que não devemos pensar o pior, por exemplo, no que toca à minha convalescença. [...]Também faltam ainda as radiografias e a radioscopia, que lançaram alguma objetividade sobre o  diagnóstico, e quem sabe se algo de importante não vem ainda à luz e se a febre não desaparece mais depressa do que se espera e vos digo adeus a todos. 

Thomas Mann, Cap V, Sopa da eternidade e súbita clareza, 

in A Montanha Mágica, 1924:214


A introdução dos raios de Röentgen nos procedimentos médicos e na avaliação do diagnóstico de TB é, apesar das metáforas, uma realidade evolutiva. Ainda hoje uma simples radiografia ao tórax é exame de primeira linha. A Tuberculose precisava, agora, de novos saberes para a interpretação deste registo e é desta forma que nos primeiros anos do sec. XX aparecem os primeiros estudos de anatomia radiológica. A partir daqui, e da primeira proposta de classificação de tuberculose de acordo com os achados radiológicos (Bombarda, 2001) a Tuberculose fica prisioneira definitivamente destes registos. Estes achados, ainda hoje são atuais e são as mesmas, as formas imagiológicas de manifestação de uma TB ativa. Quando surge a I Grande Guerra e a Tuberculose Bacilar dissemina-se por toda a Europa, tornando-se necessárias medidas acrescidas de controlo da doença, sendo uma destas medidas a realização de uma radiografia através do Raio X (Bombarda, 2001). Ainda hoje um efetivo rastreio e controlo de TB deve ter como exame de ponta também uma radiografia ao Tórax.” 

in Solano, C. 
Tuberculose: antes e depois de Roentgen. Entre metáforas e a objetividade mecânica. Revista Matria, nº7. 2018:517-520.  

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